Nelson Rodrigues pregava que toda unanimidade é burra – mas a máxima do dramaturgo merece ser colocada em dúvida diante do espetáculo Prima Facie.  Desde abril, quando estreou no Rio de Janeiro, o monólogo da australiana Suzie Miller estrelado por Débora Falabella fura bolhas e ganha indicações aos principais prêmios. Alguns podem pensar que é
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Nelson Rodrigues pregava que toda unanimidade é burra – mas a máxima do dramaturgo merece ser colocada em dúvida diante do espetáculo Prima Facie. 

Desde abril, quando estreou no Rio de Janeiro, o monólogo da australiana Suzie Miller estrelado por Débora Falabella fura bolhas e ganha indicações aos principais prêmios.

Alguns podem pensar que é exagero ou excesso de entusiasmo por causa de um tema de urgência social. Não, é tudo merecido. Podem acreditar.

Em cartaz no Teatro Vivo, em São Paulo, a montagem dirigida por Yara de Novaes se revela uma coleção de acertos e, entre tantos, um salta aos olhos do espectador. 

Aos 45 anos, Débora Falabella vive o auge de sua técnica e sensibilidade como atriz em um grau de maturidade só possível pela prática incessante do ofício em três décadas de carreira.

O desempenho triunfal como a advogada Tessa Ensler é resultado de um trabalho equilibrado e contínuo. Nome recorrente na televisão, a atriz jamais se afastou dos palcos e acumula passagens significativas pelo cinema. São pelo menos 14 peças, 15 filmes, 11 novelas e 10 séries, uma bagagem rara na sua geração. 

“É uma escolha de vida e não tem como ser diferente”, Débora disse ao Brazil Journal.  “Várias vezes ensaiei teatro na reta final de uma novela e, apesar de exausta, abri mão do descanso para estreá-la em seguida.”  

A personagem de Prima Facie também é uma trabalhadora tenaz. Superou as raízes humildes e, orgulhosa das conquistas profissionais, não dá trégua a ninguém no mundo masculino dos tribunais. O que importa é ganhar a causa e defender a “verdade” dos clientes. Fria e prática, Tessa usa a lábia para absolver, inclusive, acusados de abusos sexuais – o que a coloca em um limbo ético. “Eu fui treinada para pensar diferente,” justifica. “É o meu trabalho.”

Graças à performance de Débora, Tessa ganha a compreensão da plateia e muitos chegam a admirá-la. A advogada cresceu em uma família disfuncional e não se abala com mimimis. Um dia, começa a sair com um colega do escritório que, depois de uma bebedeira, a estupra. A tragédia passa a humanizá-la, e tamanho pragmatismo desaba por terra. “O público vibra boa parte da peça com as vitórias da personagem e cai junto no abismo quando o conflito é detonado,” diz a intérprete.    

Tessa denuncia o abusador e sente na pele o quanto sua acusação pode ser esfarelada por um advogado de defesa ardiloso, como ela mesma fez tantas vezes. Os múltiplos recursos de Débora saltam na cena. Se, na primeira parte, Tessa se vangloriava dos êxitos, depois da virada dramática parece outra mulher, frágil e insegura. 

“É muito visível o efeito da formação de Débora e o quanto ela se mostra habilitada para as mais complexas cenas,” elogia Yara de Novaes. “É uma atriz que não repete no teatro uma linguagem televisiva e conduz o público a um lugar de invenção.”

A hábil dramaturgia de Suzie Miller contribui muito para fazer aflorar o raciocínio da plateia. É raro encontrar um monólogo povoado de tantos personagens, vários deles com questões próprias e conflitos que ampliam a história da protagonista e a visão do espectador. 

O cenário de André Cortez, que se desestrutura à medida que as convicções da personagem se abalam, a luz desenhada por Wagner Antonio e a trilha sonora composta por Morris ampliam os significados da encenação.

Prima Facie se justifica ainda por colocar o dedo em uma ferida com profundidade e consistência. O crime de violência sexual não é levado ao palco de forma discursiva ou verborrágica, comum em outras montagens. “A peça mostra que o estuprador não é só aquele homem que pode te atacar em uma rua escura,” diz Yara. “A maioria dos abusadores está dentro de casa ou próximo da vítima.”

Prima Facie causou mobilização no meio político e judiciário. Depois de assistir ao espetáculo no Rio de Janeiro, a ex-procuradora-geral da República Raquel Dodge organizou uma apresentação em Brasília, seguida de um debate com a ministra Cármen Lúcia e o ex-ministro do STF Carlos Ayres Britto. “É gratificante ver que um trabalho pode contribuir para a revisão de leis criadas por homens para beneficiar os homens,” diz Débora.

Muito se fala da função social da arte. A ambição de engajar uma produção através de temas relevantes, entretanto, comumente origina narrativas panfletárias e pouco palatáveis. Antes de ser uma peça feminista e de temática relevante, Prima Facie é uma história muito bem contada, dirigida com inteligência e protagonizada por uma atriz no topo de sua forma.

Diante deste ótimo teatro, mulheres se sentirão acolhidas, e alguns homens poderão repensar suas atitudes.

 

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